O Genoma Poético

Apreendido no aeroporto quando me revistaram.
o meu poema. o meu poema.
nada mais levaram.
ao menos levassem também os meus sessenta e cinco, quase sessenta e seis, anos de idade.
ao menos varressem, com todo aquele material técnico, a minha infância
e a sombra das minhas casotas.
Podiam até furtar-me o nascimento.
Que se fodesse.

Eles sabiam muito bem ao que vinham.
Quiçá tal acto tenha sido precedido de denúncia anónima
depois difundida, tímida ou amplamente - desconheço - , nos órgãos de comunicação social.
o meu poema. o meu poema continha o genoma poético,
era o poema dos poemas o meu poema!
continha os códigos e os caminhos secretos das palavras cruas,
e representava anos e anos
da mais completa solidão, do mais completo estudo
sobre o tempo que espera demais.

Pouco sabia o que fazer, cancelei o meu voo.
nos dias seguintes tentei sem sucesso
reproduzir aquela artilharia poética,
tentei refazer mentalmente os testes que conduziram àquelas palavras.
nada fazia sentido.
nada mais fazia sentido.
depois voltei a ligar o meu telefone
e a responder a algumas mensagens
e fiz até alguns telefonemas a familiares que viviam longe
e fiz dois amigos num minimercado perto de minha casa
e que hoje passarão cá um belo serão.

deixei de querer acumular todo o conhecimento
para viver em segurança
até porque, vistas bem as coisas, não disponho de outra vida.



Tiago Nené

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem Tiago, andas inspirado. Deve ser para compensar os recentes marranços de direito, A tradução/leitura também parece ter produzido os seus seus frutos. Seria interessante ver este poema, que bem se estende em verso, em prosa.Este seria um poema que eu aceitaria como micro-narrativa e teria todo o prazer de incluir na Minguante - http://minguante.com

[Luís Ene]

Anónimo disse...

Errata: a tradução/leitura do Camarasa

[N]

Vânia disse...

E o voo, Tiago? Afinal qual era o destino?

Anónimo disse...

o destino era a tua casa... para beber um "cosi":P

T.

Vânia disse...

E sabes quem ficou com o poema?

Fizeste bem em cancelar o voo. Já não há mais cosi... levaram-nos! :P

Anónimo disse...

Agora digo eu! Bastante original!

Raquel Vasconcelos
(A Páginas tantas...)