ENTRETECENDO

Por onde começo? Tem alguma importância?

António escreve. Os dois dedos indicadores procuram as teclas. Diz a si mesmo que escreve palavra a palavra, mas seria mais verdadeiro dizer que escreve letra a letra. Com dificuldade. Mas também com prazer. O prazer da descoberta.

Matei um homem. Sei que o matei. Não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Só não sei porque o fiz.

A mesa, o portátil, a cadeira, o homem. Pouco mais cabe naquele cubículo sem janela. A porta está fechada nas suas costas.

Era um homem irritante, convencido, egoísta, uma perfeita besta, mas era meu amigo e, o mais importante, eu era amigo dele.

Todo o texto fala afinal do que é a escrita; cada texto que se escreve contém a opinião do seu autor sobre a escrita, mesmo que ele não diga nada sobre isso: a própria forma como escreve e o que escreve diz o que ele pensa sobre a escrita.

Escreve toda a manhã, depois levanta-se, espreguiça-se, quase tocando as paredes, volta-se e fica a olhar para a porta fechada.

Um dia disse-me que eu devia esforçar-me mais, que devia ser mais provocador. Era uma perfeita besta, mas isto já eu disse, isto já eu escrevi.

Porque se escreve? Porque se escreve de uma ou de outra forma? Os escritores não sabem, ainda que alguns avancem explicações.

Era um homem, mas era também uma personagem, por assim dizer, pois seria fácil, muito fácil, escrever sobre ele. Era um cromo, como se costumava dizer. Um homem excessivo, fácil de caricaturar. Mas também se mostrava complexo, tantas eram as suas contradições. E um homem é tanto mais personagem quanto mais complexo é. E excessivo. Sim. Mas era um mentiroso, um mentiroso compulsivo, um mentiroso da pior espécie, um mentiroso que acredita nas suas próprias mentiras.

António sabe que o que escreve é verdade, ainda que não o saiba explicar. Sabe algumas coisas sobre escrever mas nunca tenta explicá-las, ainda que às vezes as escreva. Há muito que aprendeu a seguir a sua intuição, a confiar no que não sabe que sabe. Escreve com facilidade. Sabe que escrever é demasiado complicado para que não deva ser feita da forma mais fácil. Por assim pensar é que criou para si uma rotina que segue com docilidade, como o embalar de um berço.

Todo o escritor é um mentiroso, um mentiroso que acredita nas suas próprias mentiras, e esta é, de um forma retorcida, a sua verdade.

Era um homem irritante, uma perfeita besta, um mentiroso compulsivo. Mas estou a repetir-me e, o que é pior, estou a dizer o que ele era, a apresentar conclusões, em vez de mostrar como ele era, sem mais.

António escreve todos os dias, das nove às treze, quatro horas em que se fecha naquele espaço diminuto onde colocou uma cadeira. A prateleira que já lá estava faz as vezes de mesa. É o seu buraco, a sua toca, como ele costuma dizer. A escrita é a sua única religião, e todas as manhãs entra ali para rezar ou para cumprir penitência, nem ele sabe ao certo. Poderia fazê-lo noutro lugar, vive sozinho num apartamento espaçoso, mas fecha-se para escrever, assim poderia ele dizer, naquele pequeno espaço pensado como uma arrecadação e que do qual ele fez o seu lugar de escrita. Fecha-se todos os dias para escrever e escreve durante quatro horas. Acredita que se escreve escrevendo.

Talvez deva começar outra vez. Talvez deva voltar ao princípio. O que pensamos ser o princípio é muitas vezes apenas um recomeço.

Escreve como se não fosse ele que escrevesse, como se fosse outro que escrevesse. Houve um tempo em que se julgava um bom escritor, não esse tempo não durou muito; depois, durante muito mais tempo, teve a certeza que era uma mau escritor; agora, não pensa nisso, limita-se a escrever, da mesma forma que faz outras coisas que lhe são essenciais, de forma desinteressada, como se não lhe dissesse respeito.

Matei-o, sim, matei-o, e no entanto recordo-o tão bem como quando estava vivo. Só que agora não me aborrece, não me maça, não me chateia de morte com os seus intermináveis monólogos. E não é que não gostasse de ouvi-lo, as suas histórias até eram divertidas, mas a intensidade com que pedia atenção e aprovação eram demais para mim. Talvez tudo isto diga muito mais de mim do que dele. Talvez seja em mim e não nele que eu deva procurar a razão porque o matei.

[…]

Falar sobre escrita é perder tempo, tempo que pode ser usado a escrever, ainda que a escrever sobre escrita.

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