[Explicar o que escrevo é algo que evito fazer, pois não sei explicá-lo, por isso é que escrevo, mas posso aqui e ali falar de como surgiu a ideia para escrever ou do que tentei fazer. A ideia deste conto, o seu ponto de partida, é-me facilmente identificável, e penso que o será também para aqueles que estiveram presentes no último encontro do texto-al, com Paulo Serra. Nos últimos dias tenho feito pequenas alterações ao texto, sobretudo cortes, mas a forma é já a final, e pouco falta para o dar por terminado. Como este pretende ser um espaço de partilha e discussão, deixo-o aqui, para quem quiser dizer o que lhe apetecer. Se alguém o quiser escrever de outra forma, que de certeza há muitas outras formas de o escrever, esteja à vontade.]
A SUA MELHOR OBRA
[ao Paulo Serra]
Achas?
Nunca fizeste nada assim. É o melhor que já fizeste, e um dos melhores quadros que já vi.
Mas ainda não está acabado.
Para mim está mais que acabado.
Não, falta qualquer coisa.
A tela estava deitada no chão e o pintor ajoelhado a seu lado, como se rezasse, a cabeça baixa. O amigo, o único verdadeiro amigo que tinha, estava em pé à sua frente, e ambos olhavam o quadro.
Estás no pleno domínio da tua arte, este quadro diz isso. Conseguiste finalmente encontrar o equilíbrio que procuravas.
Equilíbrio?
Nota-se também no que dizes, na forma como falas da tua arte. Estás diferente. Estás melhor.
Organizei-me. Precisava fazê-lo.
Sim, e isso nota-se. Há um equilíbrio quase perfeito entre o que és e a tua arte.
Equilíbrio?
O pintor olhou para cima para o amigo e os seus olhares encontraram-se. Conheciam-se há muito tempo. Tinham aprendido a escutar-se um ao outro.
Estou mais sereno mas dificilmente chamaria equilíbrio a este meu novo estado.
Estás mais seguro.
Mais seguro?
Sim, mais seguro.
Talvez.
O pintor levantou-se e recuou dois ou três passos, sempre a olhar para a tela no chão.
É sempre tão difícil acabar um quadro.
Como é que sabes quando está acabado?
Quando está acabado eu sei! O difícil é chegar lá.
Mas não sabes o que queres fazer?
Não exactamente.
Não antecipas o quadro acabado?
Não. Não propriamente.
O amigo colocou-se ao lado do pintor e ficaram os dois durante algum tempo em silêncio, a olhar a tela. O dia estava a terminar e a luz entrava já a custo no atelier. O pintor continuava a olhar a tela.
Vamos beber uma cerveja?
Mais tarde.
Tens a certeza?
Tenho de acabar o quadro.
Pensei que concordavas comigo.
Como?
Pensei que tinhas concordado que estava terminado.
Não.
O quê?
Não está terminado.
Não?
Não, ainda não.
O pintor continuou a olhar o quadro, silencioso, imóvel. A tela no chão oferecia-se ao seu olhar, submissa, mas ele olhava-a como que assustado, desconfiado. O amigo olhou para o pintor, de uma forma não muito diferente daquela que o pintor olhava para a sua obra.
Olha que não te morde.
O quê?
Olhas para o quadro como se fosse um animal perigoso.
E sorriu, soltou mesmo uma pequena risada, mas o pintor manteve o mesmo semblante inquieto e não desviou nem por um instante o olhar do quadro. O amigo foi até à porta, acendeu a luz, e ficou a olhar o pintor.
É a tua melhor obra, disse finalmente, e saiu sem esperar resposta.
Dobrou a primeira esquina a seguir ao largo e entrou no café onde iam muitas vezes os dois beber uma cerveja. Numa das mesas estava um amigo que morava ali perto, também escritor, companheiro de copos e de tertúlias.
Vieste visitar o teu amigo pintor?
Sim, saí mesmo agora do atelier.
Como é que ele está?
Está bem, as coisas estão a correr-lhe melhor. Está a começar a ser reconhecido.
Gosto do que ele faz.
Está cada vez mais no domínio da sua arte.
Os quadros dele são bastante obsessivos, não são? E ele então, é melhor nem falar.
Estavam os dois a beber cerveja e davam longos golos pelas garrafas, como que pontuando cada frase com um silêncio líquido.
A ligação entre a vida e a obra é nele muita íntima e intensa. Como em todos os grandes artistas! Não concordas?
Claro. A técnica por si só pode produzir boas obras, mas para uma obra excelente é preciso algo mais.
Havias de ver o quadro que acabou de pintar. Excelente. A sua melhor obra.
E pediram mais duas cervejas, e falaram de literatura, e mudaram de sítio, e continuaram a beber cerveja e a falar de literatura. Só muito mais tarde o escritor voltou a lembrar-se do seu amigo pintor.
Teria acabado o quadro?
No exacto momento em que o amigo se interrogou, que a realidade ultrapassa muitas vezes a ficção, o pintor levantou-se decidido, sacudindo a sua imobilidade, e dirigiu-se a uma bancada perto da janela, de onde retirou uma navalha que usava habitualmente, sempre que era necessário raspar ou cortar qualquer coisa. Trouxe-a fechada na mão até ao pé da tela e voltou a ajoelhar-se.
Olhou ainda mais uma vez a tela e mais uma vez percebeu que sabia como acabá-la. Sabia o que faltava. Seria sem dúvida a sua melhor obra.
Abriu a navalha, cortou os pulsos sem hesitação e suspendeu-os à sua frente, à altura do peito, o sangue a derramar-se sobre a tela.
4 comentários:
M-U-I-T-O-B-O-M!
Obrigada, Luís, por nos presenteares com mais um texto supremo :-)
[mbv]
Gosto como está. Para mim está concluído. Podes é querer dar mais uma pincelada.
concordo com a ginger.
para mim esta mais q acabado. n sejas como o pintor do conto,ok?:P
abraço
PS: és dos melhores escritores portugueses. n estou a brincar.
nunca acabes de escrever, está excelente
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