Eduardo Pitta antologiou boa parte da sua poesia em Marcas de Água (1999) e recolheu o seu assinalável trabalho crítico em Comenda de Fogo (2002). Pelo meio, estreou-se na ficção, com as três narrativas de Persona (2000). Embora também estivesse presente na obra poética do autor, nessas histórias, o universo homossexual era explicitamente tematizado. Agora, Eduardo Pitta alinha algumas ideias sobre esse domínio em Fractura. A Condição Homossexual na Literatura Portuguesa Contemporânea. Esta é ainda uma área de estudos nova entre nós. No mundo anglo-saxónico, pelo contrário, abundam antologias de gay fiction e gay poetry, ensaios coligidos em gay readers e cursos e seminários de gay studies nas mais prestigiadas universidades. Este breve ensaio _ mesmo por ser breve _ tem a vantagem de levantar alguns problemas,
mas algumas conclusões são provisórias e discutíveis.
A tradição literária homossexual, sobretudo na poesia, é fortíssima, pelo menos desde Homero, e nos últimos cem anos teve nomes como Wilde, Auden, Kavafis, Thom Gunn ou Edmund White. Entre nós, a primeira obra explícita sobre a homossexualidade é de 1891: O Barão de Lavos, de Abel Botelho, ainda com o enfoque naturalista da patologia social. Já no século passado, o canónico dos canónicos Fernando Pessoa apresenta evidentes traços de homoerotismo, muito embora seja um autor em que o corpo e a sexualidade são muitas vezes sublimados ou elididos Eduardo Pitta prefere considerar "A
Confissão de Lúcio" (1914), de Mário de Sá-Carneiro, como o começo do «cânone» homossexual português, ao qual, aliás, não faltam nomes de relevo, sobretudo (uma vez mais) na poesia. De forma mais ou menos explícita, existem notas homoeróticas em poetas desde Nobre e Botto até Joaquim Manuel Magalhães, e bastantes outros que o ensaísta nomeia ou deixa de fora.
Refira-se que Eduardo Pitta também menciona autores hetero que escreveram sobre a homossexualidade, em obras tão centrais como Mau Tempo no Canal e Sinais de Fogo, embora esses exemplos sirvam sobretudo para delinear um universo de hipocrisia, repressão e estereótipos; mas concentra-se, sobretudo, em autores fora do domínio hetero. Desde logo Eugénio de Andrade, «poeta laureado», que omite o género e recorre a metáforas (a «passarada», como diz malevolamente Pitta), sendo por isso totalmente canónico. Já Mário Cesariny, mais radical, está, segundo Pitta, a pagar a sua orientação assumida com uma certa marginalização no cânone (um argumento pouco convincente). Formas de radicalismo pulsional são também visíveis nas obras de Armando Silva Carvalho e Luís Miguel Nava, atingindo um assinalável grau de visceralidade.
Mas nas últimas décadas encontramos dois nomes impossíveis de ignorar: um na ficção, Guilherme de Melo, outro na poesia, Al Berto. No primeiro caso, estamos perante uma convergência de factores: social, sexual e colonial.
Alguns dos romances de Guilherme de Melo são de ambiente moçambicano, e Pitta lembra que a concentração prolongada de homens fora de portas permitiu um momento de interlúdio sexual importante, mesmo para quem assumia identidades hetero. Mas _ como Pitta reconhece _ a escrita de Guilherme de Melo é extremamente naif, por vezes insuportavelmente kitsch, o que, mesmo se caracteriza certas sensibilidades homo, dificilmente merece o resgate literário.
Al Berto, por seu lado, assumiu a feição de «poeta de culto». Genuinamente mas também oportunamente marginal e maldito, representa a faceta «sexo, drogas e rock'n roll», numa visão mais underground que põe em cena rapazinhos, delinquentes, drogados. Segundo Pitta, com esse afastamento da moralidade burguesa Al Berto desenha os contornos de uma espécie _ a raça maldita de Proust _ que se assume como o mais parecido com literatura gay que tivemos. Pese embora essa novidade, a primeira fase da obra de Al Berto parece-me extremamente pouco sofisticada (para ser benévolo), em comparação com a segunda fase, e acusação lançada por Pitta de que o poeta de Salsugem se «integrou» deixa na dúvida se a integração não seria precisamente o horizonte desejável.
É evidente que a perspectiva deste ensaio é explicitamente (homo) sexual, mas isso não justifica que esse enfoque afunile os sentidos de determinada obra literária. Pitta cita passos de certos autores, referindo a «meridiana clareza» desse textos, mas a verdade é que algumas dessas citações não se referem necessariamente à sexualidade, e por vezes Pitta acaba por
reconhecer que a leitura é mais complexa. Em Sá-Carneiro, por exemplo, as noções de máscara e duplo não podem ser univocamente lidas como biombos transparentes para a sexualidade do autor. O mesmo se diga, por maioria de
razão, de António Franco Alexandre, cujo estranhamento, hermetismo e intertextualidade não devem nem devem ser reconduzidos a um mero discurso cifrado sobre a sexualidade. Noutros autores, anulam-se as ambiguidades,
esquecendo identidades bissexuais, ou sexualidades fluidas. Esse é, aliás, uma das limitações da crítica gay (além da eufonia): a de por vezes presumir identidades sexuais fixas.
Fractura é escrito no estilo habitual de Pitta: uma elegantíssima sobriedade, um tom snob e por vezes verrinoso, alguns raciocínios elípticos e justíssimos. Mas ficam por resolver algumas questões centrais: a categoria «gay» como (des)necessária gaveta; a homogeneidade de uma «cultura homossexual»; a linha de demarcação entre emancipação e gueto; as estratégias conflituantes da integração e da transgressão; a diferença entre a literatura homossexual e literatura gay, que não fica bem definida apenas pela existência ou inexistência de uma militância. Aberto o caminho, estas tarefas ficam para próximos trabalhos, do próprio Pitta ou de terceiros.
Entretanto, a bibliografia aponta para obras importantes, do sólido Gregory Woods ao controverso Andrew Sullivan.
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