Poderia Dizer-te


para a Ana, um poema e mais

Poderia dizer-te dos tendões e das mãos onde eles percorrem

o seu destino. Poderia dizer-te dos olhos se quisesse ser fácil

este verso, dizer-te do mar e ser evidente, ou das órbitas onde

gravito em cada sorriso teu e construir metáforas. Do fascínio

que as sobrancelhas me impõem nos dedos, dizer-te das nossas

conversas na faculdade, entre as teóricas e a foz, entre os

livros de ecologia dois e a tua ternura enquanto dissecavas,

tão gentilmente, o polvo. Dizer-te da lula, não do polvo, quis

mentir para esbracejar versos como tentáculos, manter viva

a tinta, a inteligência mais reconhecida. Ou dizer-te do choco

– era, isso sim, um choco de carapaça dura com que percorrias

o bisturi e onde mantinha o meu dedo segurando-lhe a pele e

entregando, desde cedo, o meu corpo ao teu cuidado. Poderia

dizer-te do sangue no corte profundo dos meus tendões, mas

quero saber o leitor focado antes nos teus, nas mãos com que

disse o primeiro verso. Vou dizer-te: os lábios. Como quem

diz nariz mas não pode, os poemas em que se dizem faces não

permitem outra pele que não a dos lábios, outro cheiro que não

o teu, outra boca que não a tua, próxima, interrompendo frases

e subindo colinas como só estes versos longos sobem. Poderia

dizer-te tudo mas tudo ficaria inaudito. Não há poema, em cinco

séculos de literatura, que te compare a elegância nos versos.

Nem Camões, nem Florbela, nem a nossa Rosário sussurrando-nos

a voz que conhecemos nos ouvidos quando a lemos, ninguém.

Pretensão enorme a minha, portanto, ultrapassar o feito e

inaugurar linguagem – aquela que te descreva como deve.

Poderia dizer-te se o soubesse como; ou o pudesse, pelo menos,

trazer dos versos do Ruy Belo como empréstimo, elaborar o meu

Elogio de Maria Teresa mudando-lhe o destinatário e em muito

as suas palavras. Poderia dizer-te se essas mesmas palavras

permitissem impor uma mulher no centro de uma vida, uma

menina inglesa, trazida também de Cambridge, quem sabe, uma

elegância alta e vertical e desejada, um cabelo e os óculos escuros,

poderia dizer-te. Mas não. Que a minha memória desafia o

leitor a imaginar os versos que não escrevo, dizer-te poema

final e definitivo, da completude dizer-te amor.


Jorge Reis-Sá

[postado por tiago nené]

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