rente ao chão


O pátio é agora um quadrado

de luz. Sem gatos nem sombras;

apenas o silêncio das paredes, intacto.

Rente ao chão, um exercício de entropia:

tabuletas gastas, loiça em cacos, o balde

cheio de pregos tortos, aguarelas refeitas

pela chuva, baús que guardam segredos,

estantes rendidas à poeira, um par de asas

falsas, a túnica com rasgões e duas malas

de couro manchadas pelo tempo, vazias.

Ao canto, o relógio partido e os

ponteiros soltos. Um deles

aponta para as nuvens, lá

muito ao alto. O outro aponta para

nós, para aqui, para estes inumeráveis labirintos.


(JOSÉ MÁRIO SILVA, in Nuvens & Labirintos, 2001)



Escritor e crítico literário português, José Mário Silva nasceu em Paris, a 2 de Março de 1972.

Poucas semanas após o 25 de Abril de 1974, num Citröen 2 CV cheio até ao tejadilho de lona, chegou a Portugal com os progenitores, ainda eufóricos com os eflúvios da liberdade e o cheiro a cravos vermelhos. Os dois primeiros anos de vida deixaram-lhe, porém, nos ouvidos e nas circunvoluções do cérebro, como que incrustados, o gosto pela música da língua francesa e pelas coisas que essa língua diz, organiza, constrói. Não foi outra a origem da sua francofonia e francofilia. Da infância, feliz, basta dizer que foi isso mesmo: feliz.
(onde começara a escrever regularmente, a partir dos 16 anos, no suplemento Na vida adulta, fez várias coisas que constam do curriculum vitae. Curso de Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Jornalismo, a partir de Fevereiro de 1993, primeiro na extinta revista Pais, depois no Diário de NotíciasDN Jovem), depois em programas da RTP-2 (Portugalmente e Juízo Final, 1998/99), depois novamente no DN, onde foi editor adjunto do suplemento DNA (entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2005) e editor adjunto da secção de Artes do mesmo jornal (entre Janeiro de 2006 e Outubro de 2007). Na revista Time Out Lisboa, desempenhou as funções de editor convidado da secção Livros (entre Outubro de 2007 e Janeiro de 2008). Actualmente, é jornalista freelancer e colaborador do suplemento Actual, do semanário Expresso, onde assina recensões literárias (desde Fevereiro de 2008).
Em 2001, publicou o livro de poemas Nuvens & Labirintos (Gótica), ao qual foi atribuído o Prémio Literário Cidade de Almada. Do francês, traduziu dois livros de Jean-Baptiste Botul – A Vida Sexual de Immanuel Kant e Landru, Precursor do Feminismo –, além do volume Conversas entre Georges Raillard e Joan Miró.
Começou o seu primeiro blogue,
Blog de Esquerda, a 1 de Janeiro de 2003, em resposta ao que os seus amigos Pedro Mexia e Pedro Lomba escreviam na Coluna Infame. Mais tarde, o BdE mudou de plataforma para aqui. Chegou a alimentar um blogue minimalista mas um dia esqueceu-se da password e nunca mais conseguiu lá entrar. Além do Bibliotecário de Babel, que tem um foco (os livros), mantém A Invenção de Morel, que é generalista, irregular e caótico.
A sua lista de interesses é quase infinita mas inclui, muito cá para cima: os livros em desordem nas estantes abauladas; as nuvens («les merveilleux nuages», como dizia Baudelaire); o xadrez e o futebol; a arquitectura das catedrais; certos ângulos de certas fotografias; o voo imóvel do falcão peneireiro (Falco tinnunculus); estradas ladeadas por ciprestes; o cinema clássico e Godard (se isto não for uma redundância); as sombras muito esticadas ao fim do dia; os últimos quartetos de Beethoven (e a outra música: Bach, Schubert, Monteverdi, Bruckner); jardins geométricos; a arte de viajar sem mapas; os poemas que se fazem dentro da cabeça como origami; folhas amarelas de Gingko biloba; estaleiros com navios apodrecidos e ferrugem; romances de W. G. Sebald; o mar a desfazer-se em espuma longe da costa; noitadas com amigos, queijo, vinho e Os Descobridores de Catan; deambulações por cidades estrangeiras à procura daquela livraria onde talvez encontre, numa estante meio escondida, o seu Aleph. (baseado no texto publicado em
http://bibliotecariodebabel.com/sobre-o-autor/).


Obras:

  • Nuvens & Labirintos (poesia), Gótica, 2001 [Prémio Literário Cidade de Almada]
  • Efeito Borboleta e Outras Histórias (contos), Oficina do livro, 2008

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