O ofício de escritor

É uma mulher pequena, lembra uma criança, e o seu sorriso, bem como a sua energia, não destoam dessa imagem que surge sem esforço a quem, ainda que por breves instantes, repouse nela o olhar. E também fala alto, muito alto, mesmo quando não está zangada, mesmo quando não se quer fazer ouvir, tal e qual uma criança. Não a via há anos, mas pareceu-me igual, e no entanto percebi com facilidade que estava muito diferente, estava ainda mais igual a si própria. Não lhe perguntei nada, não é da minha natureza perguntar, prefiro imaginar, e ela nada me contou, não é da sua natureza falar sobre si, prefere perguntar e ouvir. Por isso respondi às suas perguntas, ao mesmo tempo que me interrogava sobre o que teria mudado na sua vida, observando-a discretamente e levantando possibilidades. A primeira é que a mera passagem do tempo lhe tinha trazido mais solidez, mais confiança em si própria, solidez e confiança que se revelavam a cada um dos seus gestos, no seu sorriso solto, até no seu penteado que se apresentava agora mais natural, aceitando os caracóis originais. A segunda, de um modo geral, é que a solidez e a confiança que facilmente lhe descobri teriam sido ganhas à custa de muito esforço para superar grandes adversidades que vivera em todos aqueles anos que eu não a vira nem soubera dela. Olhei-a de novo, mas quando o fiz, percebi que ela estava a fazer o mesmo que eu, que estava a tentar ver para além do que eu dizia, estava a tentar ler em mim o que eu nunca lhe diria, por mais verdadeiro que eu fosse nas respostas às suas perguntas. Então calei-me e ela calou-se também, mas não deixou de me sorrir, não deixou de me olhar, e lembrou-me mais do que nunca uma criança. Queria ter-lhe dito isso, e mais, mas limitei-me a beijá-la e a ir-me embora sem olhar para trás. Muito mais do que falar, continuo a gostar de imaginar. É a minha maior virtude e o meu maior defeito.
[Faro, 21 de Outubro de 2008]

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