Os olhos cheios de vazio (exercício de escrita)

[Para o Tiago Nené, com simpatia]


Terminara já, mas continuava de pé, os olhos muito abertos, cheios de vazio, numa expressão que lhe era muito característica e que lhe dava, segundo alguns, ar de poeta. O juiz tossiu pela segunda vez e ele pareceu despertar, sentando-se bruscamente, não sem antes ter feito uma ligeira vénia na direcção daquele.

Poetas, exclamou para si mesmo o juiz, que era dado a filosofar. Razão tinha o Platão em não os querer na sua cidade, e lançou ao jovem advogado um olhar inquisidor. Como se chamava mesmo o livro que ele lhe vendera? Lá descaramento não lhe faltava. Mostrou-lhe o livro, passou-o para as suas mãos como se fosse oferecê-lo, e quando ele lhe pegou, eis que anunciou peremptoriamente o preço, como se a compra fosse um facto consumado.

Estava o jovem advogado absorto, os olhos muito abertos por detrás das lentes grossas e dos óculos pesados, cheios de vazio, como já se disse e se repete, com o seu ar de poeta; estava o juiz alheado, divagando; estava o réu, que só agora é referido, quase adormecido, bocejando de tédio.

Mas a narrativa tem de continuar, e a justiça, ainda que lenta, ainda que cega, há-de fazer-se, há-de ser feita, mas depois, que o juiz dá a audiência por encerrada, remetendo a justiça para a leitura da sentença, perante o silêncio do réu, que tanto queria dizer que nada conseguiu dizer afinal.

Como é que correu senhor doutor? Tenho hipóteses?

Já no corredor do tribunal, o jovem advogado, ainda absorto, olha para o réu mas não o vê, não o ouve, ou pelo menos é o que parece, e o réu insiste.

Senhor doutor, como é, tenho hipóteses?

Sim… Claro… Agora é preciso esperar pela sentença…

E calou-se.

O réu ainda abriu a boca para falar, mas o jovem advogado olhou-o de forma tão intensa que ele se calou, intimidado.

A verdade é que o jovem advogado não estava ali e o jovem poeta continuava cego, continuava à procura do poema que o surpreendera durante as alegações. Ainda não o conseguira ver com clareza, talvez nunca viesse mesmo a capturá-lo, mas qualquer distracção e de certeza que o perderia para sempre.

Era assim que sempre fazia. Primeiro, surpreendia o poema e era surpreendido por ele, só depois o escrevia e era escrito por ele. E nesses momentos o mundo exterior dificilmente chegava até ele, tão imerso estava no seu mundo interior. Isto pelo menos era o que ele dizia, que muitos achavam que ele era apenas distraído e se desculpava assim.

Mas por que é que alguém quer ser poeta?

Ninguém quer ser o que quer que seja, poeta ou outra coisa, simplesmente não se pode deixar de o ser.

O amigo riu-se.

Não te ponhas com esse teu ar sério de poeta que não me enganas. És poeta, não o duvido, mas não é por isso que a tua vontade de ser poeta diminuiu. Sempre quiseste muito ser poeta e ainda continua a ser assim. É esse teu desejo de ser poeta que te mantém poeta.

E olhou o amigo nos olhos, mas ele parecia ausente, os olhos muito abertos, cheios de vazio.

Na verdade, por que é que alguém quer ser poeta? Porque é que alguém escreve poemas e quer ser reconhecido como poeta? Estas perguntas faz o jovem poeta, mas não a si mesmo, são meras perguntas de retórica. Ele bem sabe que quer escrever poemas, que quer ser reconhecido como poeta. Que importam as razões, ainda que as pudesse facilmente encontrar?

Levantou-se e iniciou as suas alegações, os olhos muito abertos, cheios de vazio.

[Faro, 15 de Outubro de 2008]

3 comentários:

Vânia disse...

Oh Luís, nem sei o que diga! Isto é de quem escreve a sorrir! :D

[eu agora ando a escrever zangada... só para experimentar]

Beijinhos

Anónimo disse...

mt bom texto, mt equilibrado.

poetas e advogados, há mais do que as pessoas pensam.

obrigado pela dedicatoria.

abraço

P.AP disse...

Olá Texto-al
Aprecio bastante o vosso trabalho.
Muito interessante este texto sobre a dualidade advogado/poeta, sobre o poder da palavra que une os dois, mas penso que a poesia vencerá sempre todas as causas...
Cunprimentos