os poetas fazem-me confusão

Os poetas fazem-me confusão. Sempre me fizeram confusão. Porque não dizem o que sentem de uma forma escorreita que todos possam compreender?

Se escrever é comunicar, porque escolhem uma escrita que torna tão difícil a comunicação? Porque escondem os seus sentimentos atrás de uma parede translúcida de palavras com sentidos que fogem pelo texto fora, sentidos que se escondem quando os procuramos, que escorregam das mãos quando os agarramos, que se tornam fluidos quando por fim os capturamos, ficando nas mãos com coisa nenhuma e na boca, com o travo de quem não chegou a saborear, mas apenas a adivinhar o sabor pelo aroma suave que fugazmente aflorou as narinas.

Ocorre-me pensar que os poetas não comunicam histórias ou enredos, factos ou realidades palpáveis, razões ou argumentos. Não, eles comunicam sensações, emoções, frémitos fugazes, olhares etéreos que só eles registam. Eles renunciaram à deusa Razão e à sua inseparável comadre Lógica. Eles tentam transmitir o intransmissível, eles tentam fazer sentir aos outros o que nem eles próprios têm a certeza de sentir. Não, não fingem: transformam a alusão de uma emoção na emoção que gostavam que tivesse existido, prendem no tempo um olhar demasiado breve sobre uma realidade que não teve tempo de se definir antes de deixar de existir. É o reino do indefinido, do que não chegou a ser, do que não se pode identificar, é a dimensão mais que humana, a dimensão que nem todos conhecem e que menos ainda querem conhecer. É um mundo irreal e inseguro, onde não nos conseguimos mover mas apenas assistir, não com os sentidos alerta, mas com a alma aberta à sedução, com a emoção desperta e pronta a reagir em instantes, sem seguir o antes e sem esperar o depois.

O poeta também cultiva as emoções em excesso: a dor a que ninguém resistiria ou a paixão que impediria qualquer um de dormir, comer ou sequer respirar. O poeta usa cores tão intensas que não foram inventadas. O poeta escreve melodias que o ouvido humano não capta. Mas é sempre o mesmo poeta que assiste imóvel, deixando a alma seduzir-se pelas emoções. Não é a outra face da mesma moeda. As moedas do poeta só têm uma face que pode ganhar muitas formas: difusas, suaves, intensas, marcadas.

Os poetas serão retratistas da alma? Antes da fotografia, havia o retrato. Saber que um retrato pode ser melhor que uma fotografia, teve que esperar pela invenção da fotografia. Teremos que esperar pela invenção da almografia para louvar os poetas? Tarefa ciclópica a deles, sem garantias de ser compreendida e sempre na dúvida quanto ao resultado. Como posso explicar a um cego a cor? Como posso transmitir a um surdo o prazer da música? Como pode um poeta despertar a alma que não sabemos que temos, evocar emoções que não sentimos, fazer-nos ver o que não chega a existir?


Zé do Teclado (texto encontrado [aqui])

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