Asas

Olhas-me serenamente, no mais profundo de ti existe a palavra. A única palavra, talvez a mais verdadeira. Dizes-me,
- É complicada a língua portuguesa,
E de súbito desvias o olhar para qualquer outra coisa que momentaneamente te faça esquecer o motivo que te trouxe aqui.
Sorris-me. Durante instantes penso se te deveria sorrir também,
- (é complicado entender o coração),
Apetece-me dizer-te.
Pronuncias apenas mais um par de palavras às quais não dou nem saberei como dar o devido destino. O meu olhar perde-se no semáforo da avenida.
Há anos que a tua intermitência me recorda um semáforo continuamente avariado. Há anos que finjo poder consertá-lo, há anos que evito colisões frontais.
Dizes,
- Desculpa.
E a palavra a cair cá no fundo. Tão oca, tão breve, tão só. A única, talvez a mais verdadeira…
É complicada a língua portuguesa.
Como dizer-te sem usar palavras que não posso e não quero perdoar-te? Como dizer-te sem ferir-te os sentidos que sou apenas mais um animal feroz a quem foram roubadas as garras?
- Sim, tudo bem.
Depois beijo-te, levanto-me e vou para onde me guiarem os pés, que são, por vezes, apenas asas comandadas à velocidade furiosa de um coração inundado pela dor.

1 comentário:

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Sim como pedir desculpa, sem pedir desculpa nenhuma, realmente estranho, ás vezes sob a forma mais esfarrapada que existe, muitas vezes também para não magoar muito, e todos sabemos que magoa mas por vezes é melhor assim.

Excelente texto gostei também de brincar um pouco com as suas palavras, parabens