As Correntes d'Escritas têm o mérito de ser um encontro de integração de escritores e editores e consequente abertura ao público, com a devida importância que os media lhes tem dado. Agrada-me sobremaneira, e daí ter aceite o convite, esta democracia, este respeito por todos os autores de qualidade, por todos os géneros literários, por todas as zonas geográficas, mesmo que isso custe a alguns. Como disse na minha intervenção na mesa em que estive (subordinada ao tema "o poeta é um predador" - ladeado por Inma Luna, Jorge Melícias, Francisco José Viegas, valter hugo mãe e Ivo Machado) não é fácil promover a poesia em Portugal, ainda para mais usando de indepedência e levando tudo - e no meu caso a tradução da poesia, área onde mais tenho intervindo nos últimos tempos - na base do gosto e do prazer, sem perder tempo a criticar o que não gosto. As Correntes, com as suas mesas e eventos, têm servido todos os gostos.
No final do encontro trouxe na bagagem coisas promissoras que ouvi, convites que foram feitos, projectos que ali surgiram, empatias que se geraram instantaneamente. Infelizmente o meu novo livro de poesia, intitulado Polishop (Punta Umbría, ed. Palavra Ibérica, bilingue), não esteve pronto a tempo de o apresentar, como previsto. Fiz questão de me despedir da organização do evento, na pessoa da Manuela Ribeiro, agradecendo todos os esforços e a excelência do tratamento. Com certeza que um bom bocado das Correntes veio para o Algarve e esse facto fará aproximar ainda mais as distâncias, trará para cá autores novos na sequência de outros que têm vindo (como o Ivo Machado, de que apresentei o seu último livro de poesia - Tamujal - recentemente em Faro).
Por fim, deixo uma tradução inédita de um poema de Inma Luna, desconhecida para muitos, como muitos poetas de grande qualidade do sul da Península Ibérica - Algarve e Andaluzia - e ilhas. Inma Luna, que já conheço de há muito, exibiu o seu charme, simplicidade, e talento, bem resumidos pela imprensa escrita com a frase "o poeta é o gourmet do recôndito", que marcou o encontro e, em particular, a mesa a que aludi.
Palavras como acto inevitável
No gesto quotidiano do beber das plantas
está cada palavra que para ti escrevo,
para ti e para todos.
A ponta da língua que se queima enquanto faço café,
quando seguro a porta com um dedo
e as unhas batem no azulejo
com a raiva do que se sabe indefinidamente postergado.
Mais tarde não mais passará o tempo;
quando nos levantarmos pela noite
com uma sensação de medo atrás das orelhas,
fingindo que dormimos,
pensando em coisas maiores.
Mas agora enchem-se-me as linhas de palavras
carecendo de um mínimo de traçado,
uma iluminação remota
para ser o que são:
razões saturadas
que se diluem aos quatro cantos.
Apenas sou capaz de saudá-las,
com este odor a cascalho que sempre me corta,
com a vontade ilógica de ficarmos sentados
defronte os lamentos dos outros
sem saber como tocar-lhes,
sem saber o que dizer aos seus vazios
que têm a medida e a exactidão dos nossos,
as mesmas mortes e os mesmos desastres
embora pintados com outra gama de tonalidades.
Tudo é um choque,
a vergonha de acreditar
que somos donos do nosso arbítrio.
Demoramos o tempo de uma subtracção
para que não fiquem as mãos tão inúteis
perante os filhos
que saberão, afinal, que não sabemos nós
como tudo sucedeu,
belíssimo que estava o momento
quando nos trasladámos para a vida.
in El círculo de Newton
(Baile del Sol, Tenerife, 2007)
Tradução inédita de Tiago Nené
(texto de Tiago Nené)
1 comentário:
Tiagoooooooo, obrigada. Fue un placer grandísimo compartir mesa con tan sutiles comensales.
Beijoooo.
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