Partida
Quando parti ninguém apareceu à beira da pista.
Quando parti as viagens eram coisa simples e banal,
e não este desejo de procurar um sentido para
a mágoa, uma clareira para a ausência, uma fonte
- minúscula que fosse - para saciar aquilo que
se mantém ininterrupta sede. Quando parti estavam
todos atarefados a viajar; mas de outro modo -
voracidade de prestamistas, esbugalhados olhos
onde o tempo é tão transaccionável, quanto um futuro
hipotecado ou uma mera jante enferrujada. Quando
parti tiveram logo o cuidado de me avisar que a poesia
nunca salvara ninguém, que a procura das raízes
(bem como o entendimento de um passado não
acontecido) era coisa tão ridícula quanto obsoleta
para o riso alvar de muitos. Quando parti a buganvília
da moradia em frente estava esplendorosa e havia
um gato a furar a rede. Quando parti uma mulher
no prédio ao lado sacudia um pequeno tapete.
Acenou-me. Sorriu. Quando parti imaginei
o escárnio deles, os telefonemas duns para os outros,
as conversas. Quando parti ninguém apareceu
para se despedir; havia apenas: eu, um objectivo
incerto, o teu rosto a reflectir-se ao longe
e o sol a dar de chapa nas vidraças.
§
Desabitada presença
Na foto ela está sorridente. Ar inocente,
conseguido. Ele também, triunfante e
pose a condizer, embora presa de presa,
mas sem o saber. Outros iguais nas mesas
vizinhas - esperam a hora para descer
aos bares. Pelo tamanho e pela feiura
reconheço o local - a Piazza Vittorio. Sempre
a detestei! Reconheço até a esplanada,
que constantemente evitava quando ia para aqueles
lados. Na foto lá estão os toldos branco-
-sujo a cobrir as mesas, as cervejas, os sorrisos.
A um transeunte foi-lhe roubado o espanto,
fixado naquele pedaço de papel sem brilho.
Debruço-me para dentro da foto, mas não
me vejo. Contudo, tenho a certeza que estou
ali - certeza inquestionável, sem dissimulação
nem álibi. Talvez esteja no interior de um carro,
à porta do café, na inquietação de um qualquer
pensamento. Mas não, não me vejo! No entanto
- e repito - tenho a certeza que estou naquela
foto, que reproduz um encontro a que não fui.
§
Deambulação e fuga
Agora não. Agora esta impávida frieza a descer
as ruas. Este esmorecer da tarde nas aprazíveis
fachadas barrocas. O alinhamento das mesas,
sob as arcadas, ostensivamente esperando o nocturno
tumulto de nada. Agora as lojas, as rasgadas
montras, o néon. Agora o meu intento difuso -
tantos anos depois - a enviesar a rota para um encontro
de mim. Inevitável encontro (sem modas nem
circunstâncias) à revelia de tanta e tanta coisa,
sobretudo da memória; pegajosa fuligem a enegrecer
um desejo já morto, fantasias que também tive,
tão ridículas quanto inúteis. Agora eu - apenas;
esta alegria recuperada sem abastardamento
ou traiçoeira amarra sibilinamente a infiltrar-se,
como outrora. Eu a prosseguir, a saborear a Via
Roma no escondimento de passagens outras,
longínquas... Na Piazza San Carlo, Emanuel Filiberto,
de cima do pedestal, parece reconhecer-me. Ou talvez
enfadar-se. Nem eu sei bem! Santa Cristina, desta vez
sem as coisas dos restauros, oferece-me as portas
abertas com parcimónia. Mas eu fico - cruzamento
de cultos e sentires ao arremedo de mim. Fico
e a cidade acolhe-me como um imenso regaço,
um aconchego de vozes a incitar voos. Agora não.
Agora é tarde. Demasiado tarde. É tempo de te arrancar
à volátil orgânica da fala. De te excluir. De te
dissolver no ar como barca de vento à deriva.
E depois, após tão justo feito, regressar a casa
como se nunca nada tivesse acontecido.
Victor Oliveira Mateus
poemas da obra poética "Regresso"editora Labirinto
2010
1 comentário:
um aconchego de vozes em letras a incitar voos e vozes às tetas!
incrível!
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