MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA
[ensaio sobre celebridades]
com as rugas escondidas de uma distância esticada,
o útero mudo, uma língua fóssil, a emoção mortífera.
o seu fruto é frígido, o seu todo tem as partes por unir.
as alíneas do seu índice são duvidosas e a música
que lhe enche o quarto é de vinil branco. o seu
tempo não tem a densidade que o nome exige,
apesar de ninguém o saber. dos seus olhos saem
porcelanas, o seu inverno é subterrâneo, a sua história
conta-se por carta. no seu exílio conheceu gente
que traduziu goethe e hölderlin e lhes acrescentou versos
por graça. os seus erros nunca couberam dentro de versos
porque o seu coração sempre mudou com as novas
grafias. nunca ninguém colocou um dedo que fosse
nas suas feridas porque sempre as soube esconder
fora dos locais do rosto. o seu sigilo tem a duração
do olhar, e este, sem distinguir planos, descontinua
a discrição dos movimentos dos outros. o seu infinito
oscila na memória inconsciente, a sua água é
vaporizada com as sombras do corpo contra a luz
quente. o seu alheamento é um pequeno subúrbio
onde os carros não passam e o passado das pessoas
que lá vivem fica na grande cidade. a sua imaginação
é solitária, a sua razão sempre extirpou a matéria fluida.
as suas pétalas são autónomas em relação às flores,
as suas cores envelhecem como se por esse facto
deixassem de ser úteis. a partir de certa altura
a sua natureza torna-se sonora e inexprimível, e
as suas obsessões são indefesas e frágeis. rilke
um dia escreve-lhe uma carta que veio devolvida
e nela constava um poema escrito à mão e pingos
de suor nocturno. todos os seus princípios eram
oficialmente os seus fins, e o silêncio do público
estranhamente o fazia notar ainda mais. até que ela
morre, morre mais do que a lei da vida, e o seu abismo
continua exuberante. apesar de ter vivido uma vida
corrosiva, ela permanece como um protótipo, porque
as pessoas não vêem as pequenas coisas, porque as
pessoas não se revêem nos equilíbrios, porque as pessoas
parecem sobreviver quando alguém morre, porque
as pessoas apenas sabem ver ao longe.
Tiago Nené
em "Polishop"
Punta Umbría, 2010
Colecção Palavra Ibérica
Bilingue
Tradução de Santiago Aguaded Landero
Prefácio de José Carlos Barros
* Na foto o poeta António Ramos Rosa lê o livro de poesia "Polishop", de Tiago Nené
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