contar o conto

Seria fácil dizer que peguei numa faca, retalhei com ela o meu peito até o abrir, extraí o coração e atirei-o fora. Não que eu, como qualquer outra pessoa, não sentisse muitas vezes vontade de fazer isso. Não, tudo aconteceu de uma maneira diferente, contrária ao que eu esperava que viesse a acontecer.

Assim começa o conto de Doris Lessing, Como me livrei finalmente do meu coração, incluído numa antologia publicada pela Ulisseia com o título genérico de Um homem e duas mulheres, título de um dos contos incluídos. Mas o que me leva a escrever não é comentar o livro mas apenas este início, necessário para o desenrolar do conto, mas que não deixa de ser um falso início, e ainda mais necessário por isso mesmo, para despertar, desviar e de novo despertar a atenção do leitor. E lembrei-me de Júlio Cortazar quando dizia que se olhássemos para a primeira página de um conto, de um conto excelente, veríamos que nada aí estaria a mais. É o caso, e não será, penso eu, uma questão de pura técnica literária, mas a melhor forma que a autora encontrou para contar a sua história e nos manter presos a ela, porque, como dizia certo escritor amante do boxe, um romance ganha sempre aos pontos enquanto o conto tem de ganhar por knock out, e até os primeiros golpes, como este início que parece inofensivo, são já o preparar da derrota.

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