[Há tempos, alguém que me conhecia como autor de micronarrativas perguntou-me, não sem ironia, quando é que eu escrevia um romance. Respondi-lhe, com um sorriso, que não só já tinha escrito um romance, como até o tinha publicado. Na verdade foi o primeiro texto literário que escrevi, e que vi publicado. O que só vem ao caso para dizer que se escrevo contos é porque gosto de o fazer, não porque não consiga escrever romances. E mesmo se não conseguisse... ]
A MESMA HISTÓRIA DE SEMPRE
[O quê, quem, onde, quando e como.]
Olha o que fizeste!
Não tem importância.
Não tem importância?
Deixa, eu trato disso.
Contigo é sempre a mesma história. Por que o fizeste?
Porque me apeteceu.
O problema é esse, fazes sempre o que te apetece.
Tens razão, é sempre a mesma história, não vale a pena falar sobre isso. Olha, vou tomar banho e trocar de roupa.
Saiu da sala e entrou num dos quartos, o único que tinha casa de banho privativa. A mulher seguiu-o, sentou-se na cama e ficou a vê-lo despir-se. O homem foi colocando cada peça que despia numa cadeira, até ficar completamente nu. Depois tirou do armário a roupa que ia vestir e estendeu-a em cima da cama, ao lado da mulher.
Não te compreendo.
Nem eu me compreendo.
És sempre tão metódico, tão organizado, quase fanático, e ao mesmo tempo és tão impulsivo, tão… nem sei.
O homem olhou-a sem responder e dirigiu-se nu para a casa de banho, onde entrou deixando a porta aberta atrás de si. Pôs a água a correr e veio até à porta.
Não me compreendes, não me compreendes, e depois? É sempre a mesma história, para tudo precisas de um porquê. A mim não me interessam os porquês, pensei que já tinhas percebido. Faço o que tenho de fazer e depois não penso mais nisso. O que está feito está feito.
A mulher ficou a olhar para ele, para o seu corpo nu, até que ele lhe voltou as costas e entrou na casa de banho. Agora tinham de ir embora, haviam alugado aquela casa isolada junto ao mar e planeado ficar ali um mês, mas nem sequer tinha passado ainda uma semana.
Levantou-se, foi até à porta da casa de banho e gritou lá para dentro:
Agora vamos ter de ir embora!
E como ele não respondesse, gritou de novo:
Estás a ouvir-me?
Estou a ouvir, disse o homem, fazendo-se ouvir com nitidez por cima do barulho do duche.
Então por que não me respondes?
O homem fechou o duche, correu a cortina, esfregou-se vigorosamente com uma enorme toalha amarela e colocou-se à frente dele, olhando-a nos olhos.
Estou a ouvir.
Ela aguentou o olhar dele e ficaram assim algum tempo, imóveis, silenciosos, um à frente do outro, a olharem-se.
É sempre a mesma história. É sempre a mesma história, repetiu a mulher, e tocou-lhe o peito com as pontas dos dedos e, sem deixar de o olhar nos olhos, cravou-lhe fundo as unhas, sentindo-o contrair-se. O homem enlaçou-a e puxou-a para si, mas a mulher libertou-se e soltou uma gargalhada forte.
Isto não é como tu queres.
O homem olhou-a sem dizer nada e dirigiu-se para cama, começando a vestir-se, primeiro as cuecas, depois as meias e finalmente a camisa e as calças.
Vamos embora daqui?
Podemos ir e podemos ficar.
Tanto faz?
Podemos fazer uma coisa ou outra.
A mulher estava à porta do quarto. Virou a cabeça para ele sem sair do sítio.
O que queres fazer?
Não sei, acho que tanto me faz. O que queres tu fazer?
A mulher riu-se.
É sempre a mesma história. Fazes sempre o que te apetece, mas de vez em quando perguntas-me o que quero.
O homem sorriu pela primeira vez, e a mulher pensou que ele tinha um sorriso bonito.
É muito mais fácil irmos embora. E acho que já não faz sentido ficar aqui.
A mulher sorriu também.
Tens razão. Vou arrumar as minhas coisas. Em meia hora estou despachada. Que dizes?
Sim, vou fazer o mesmo. Encontramo-nos no carro daqui a meia hora.
E ele?
O que tem?
Vamos deixá-lo aqui?
É o mais fácil. A casa foi alugada através de uma agência, com um nome falso. Só daqui a mais de um mês encontrarão o morto. Nada nos liga a ele. Seja como for já estaremos longe.
Olharam-se em silêncio até que a mulher, de forma brusca, beijou o homem de leve nos lábios e saiu do quarto, passando pela sala sem olhar para o lugar onde o morto jazia no chão.
Mais tarde, quando saíram, fizeram os dois o mesmo, pois nem por um momento olharam para trás.
É sempre a mesma história. O que está feito está feito.
1 comentário:
mais um brilhante conto:)
espero que venham mts mais destes;)
abraço
Canels
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