OS MEUS DIAS

[AS MINHAS LEITURAS]

Ler é algo que levo muito a sério. Leio todos os dias sem falta, pela manhã, que é quando sinto a mente mais aberta à alegria da leitura.

Levanto-me muito cedo e, depois de executar a minha higiene pessoal e tomar a primeira refeição do dia, leio até a fome me voltar, lá para o meio da manhã, altura em que interrompo a leitura, apenas o tempo suficiente para comer uma peça de fruta, e retomo-a depois sem mais pausas até à hora do almoço. São mais de quatro horas de leitura por dia, o que me parece perfeitamente adequado ao meu estado e à minha condição actuais.

Continuo a trazer livros para casa e a enchê-la com eles, como sempre fiz, mas os livros que leio são os mesmos há anos. Não conheço maior felicidade do que reler aqueles poucos livros que me agradam sempre mais a cada leitura.

[OS MEUS ALMOÇOS]

O almoço é sem dúvida a refeição a que dou mais importância, a única refeição do dia em que preparo realmente alguma coisa para comer e também a única em que me sento à mesa para comer.

No entanto, tal como as outras refeições, o meu almoço depende sempre do que tenha em casa, o que, por estes dias que correm, depende por sua vez do que tenha recolhido durante os meus passeios dos dias anteriores.

Hoje, por exemplo, é um bom dia, tenho um pacote inteiro de arroz carolino que me ofereceram ontem e um ramo de coentros que apanhei numa pequena horta no limite norte da cidade. Tenho também uma garrafa pequena de azeite meio cheia que trouxe comigo da última vez que me sentei num restaurante.

Nestas circunstâncias, o meu almoço adivinha-se pouco exuberante, mas há muito que aprendi que o apetite é o melhor dos temperos.

[AS MINHAS CONVERSAS]

Nos meus passeios gosto muito de conversar com os cães, os gatos e as pedras, ainda que com cada um deles por razões diferentes.

Os cães abrem muito a boca, abanam vigorosamente a cauda e às vezes até ladram, mas nunca me ignoram ou me olham com indiferença.

Os gatos deixam-me falar, silenciosos, atentos, como que dizendo-me que aqueles que escutam não são menos importantes do que aqueles que falam.

De todos, os melhores ouvintes são as pedras, ainda que as maiores escutem melhor que as mais pequenas e as mais redondas melhor que as pontiagudas.

Já com as flores raramente converso, aprecio muito a sua beleza mas não lhes suporto a tagarelice: têm sempre alguma coisa pouco importante para dizer e estão sempre dispostas a dizê-lo.

Escusado será dizer que nos meus passeios nunca converso com pessoas. Elas olham-me, cada vez mais, com um misto de indiferença e desconfiança.

[OS MEUS PASSEIOS]

Uma única preocupação rege os passeios que dou todas as tardes, a de que não tenham qualquer objectivo. Não quero com eles chegar a algum lado ou obter algum proveito. A única função que realizam é de ordem estritamente espiritual e tudo faço para garantir que assim continue.

Por esse motivo é que são todos diferentes no seu traçado, o mais possível, apesar de, por segurança e comodidade, serem em parte iguais a si próprios, pelo menos pela metade, uma vez que regresso sempre pelo mesmo caminho que me levou onde o acaso, apesar de controlado, me conduziu.

Verdade seja dita que sempre tive uma boa memória visual e um razoável grau de concentração, o que explica que nunca me tenha perdido e tenha sempre conseguido regressar sobre os meus passos.

Mas se no início o fazia com alguma dificuldade, hoje em dia passeio sem esforço e com autêntica felicidade.

[AS MINHAS NOITES]

As minhas noites são todas iguais: fico sempre em casa mas quase não durmo. É um problema que tenho há muitos anos, e para o qual não consegui arranjar outra solução a não ser aceitá-lo, e aproveitar as poucas horas que consigo dormir.

Como nunca sei quando o sono vai chegar, deixo-me ficar à espera dele quanto tempo for necessário, deitado na cama, imóvel, de barriga para o ar e com os olhos bem fechados.

Aprendi desta forma a identificar todos os ruídos que se produzem no meu bairro desde que o dia desaparece até que volta, pois a insónia abriu-me os sentidos e a memória das noites é-me muito mais viva que a dos dias.

Só não sei a que horas os ruídos se produzem, pois mantenho sempre os olhos fechados, mas conheço toda a sequência em que se produzem, como se fosse o próprio bater do meu coração.

3 comentários:

Anónimo disse...

Está criada uma nova variante da micronarrativa, a médianarrativa. Pois, parece-me, que este texto avulta a mais do que apenas micro.

Abraço
CC

luís ene disse...

:)uma série de micros :)

abraço

Anónimo disse...

alguém já disse que: graças à arte, em lugar de vermos um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver (como tu) mais mundos teremos á nossa disposição
abraço