Microscópio (um poema de Tiago Nené)




















[aos cientistas da poesia]


há um problema. este poema não começou assim,
assim desta forma,
não, não. o poema começou antes,
minutos antes de o escrever,
e o primeiro verso está muito longe
daquele que agora expendi.
também a cor do poema era outra, uma
cor difusa, definida por olhos azulões,
que o expiavam e viam através,
que suspiravam no seu sangue castanho,
que sondavam o seu insignificante-aos-olhos-de-muitos
significado mais arterial,
uma cor fundida e por outro lado fundente,
oblíqua, verticalizante, material.
quando aqui cheguei, um ou dois sonhos depois,
tudo era diferente e diferenciado,
e nem uma palavra se manteve quieta e justa.
e este exemplo, creio,
negro e incerto, inundado de um transparente opaco,
talvez possamos reter e demorar na sombra patológica das sílabas,
tal bastando para concluirmos:
1. que hoje não podemos decretar a liberdade
da lágrima no rosto preso
(concebemo-nos, recordo, dentro de um animal adolescente)
2. que a poesia não poderia ser, nunca,
como alegam esses homens de palavra de veios pulsados
e microscopizada, uma ciência exacta.

Tiago Nené
inédito

12 comentários:

Cristiane Felipe disse...

Bravo!
Admirável poema, verdadeiramente admirável!
Palavras que lembram flexadas...

Vinícius Paes disse...

Fantástico... acompanho isso faz algum tempo já... sou fã.
Muito bom.

abratz.

Poemas e Cotidiano disse...

Muito bonito!
Assino em baixo! Coracao nunca podera ser analisado como ciencia exata!
Beijos
MARY

Adriana Godoy disse...

Este poema mostra o processo que se dá na criação, de uma maneira poética e ao mesmo tempo crítica. Um ritmo que dança e acolhe.

vieira calado disse...

Um abraço, desde Lagos.

Anita Mendes disse...

perfeito! gosto da cadência das palavras e a conclusão que nos deixa intrigada. muito lindo mesmo.

ps: o serendipities estara sempre de portas abertas... voltaremos por aqui em breve.
Saludos pra ti.
Anita.

Anónimo disse...

o poema flui mt bem e leio-o como uma crítica. efectivamente as coisas nunca são o que são, tudo muda. e talvez a beleza da poesia esteja aí: um estreitar de fronteiras entre o mundo real e o mundo aí transcrito. por vezes a linguagem poética, apesar de indirecta, faz curiosamente extinguir essas distancias.

gostei mm mt deste poema e de imagens como "a sombra patológica das sílabas" para designar palavras pesadas...mt inovador.

pena que não escreves mt aqui. percebo isso, mas delicio-me sempre que há algo de novo.

um beijo

Anónimo disse...

Tiago, excelente!

Adriano Narciso disse...

Muito bom Tiago!
já tenho uma novidade xD

Rounds disse...

gostei dos seus poemas, principalmente do cocktail bukowski
que ca: mila postou no vaga-lumens.

abs

Heduardo Kiesse disse...

de regresso...

pra reler assim - esta perfeita denúnia poemática - ciência!

abraços

Joana Serrado disse...

gostei muito. Mas "nao concordo". A ciencia é que é poetica... mas isso dava pano para mangas, e o que interessa é que gostei mesmo muito do teu poema. Memso se fosse futebolista (nao, talvez nao). Ficamos a aespera da instalacao!
Beijinhos