Com mais atenção tenho relido a obra de Mario Benedetti, um dos meus poetas de eleição. Há algo de muito especial na escrita aparentemente muito simples, uma mágoa e nostalgia que percorrem todos os poemas, uma sensação de lamento, a criação de um ambiente. Talvez um bom poema não dependa directamente das palavras, talvez as melhores palavras e ideias não formem o melhor poema, talvez as sensações estejam noutro campo, quem sabe bem perto dos outros, mas só ao alcance de uma sensibilidade bem apurada. Lendo este poema, lembrei-me do poeta português José Carlos Barros [Prémio Sebastião da Gama 2009], único poeta português contemporâneo em cuja obra vejo este tipo de características.
.AMOR DE TARDE
.
É uma lástima que não estejas comigo
quando vejo no relógio que já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para descontrair as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
.
É uma lástima que não estejas comigo
quando vejo que no relógio já são cinco
e eu sou uma manivela calculando juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz contas e lhes saca verdades.
.
É uma lástima que não estejas comigo
quando vejo que no relógio já são seis.
Podias chegar de repente
e dizer "então?" e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos teus lábios
e tu com o risco azul do meu carbono.
.
Mario Benedetti
tradução de Tiago Nené
[tn]
4 comentários:
olá,
já li algo do mario, mas foi sobre um romance...
gostei da poesia. vou atrás.
abs
Me inspirei muito com o poema, q até postarei algo a partir desse.
incrível
Lindíssimo!
Voam as horas, enquanto se espera...
E que a espera não seja em vão...
Em meu blog, por coincidência,
"ao aguardo do amor".
Abraço, Tiago!
Enviar um comentário